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A dor da árvore
A dor, a alegria e os demais sentimentos não são atributos apenas dos seres humanos, são fenômenos que atingem todos os seres dotados de vida. Quando um animal vai para o abate, quando leva chibatadas, quando é maltratado, a dor consome seus membros e ele se recolhe tentando fugir ao perigo. Com a alegria segue o mesmo passo. A existência é forjada nos pilares cruciais dos acontecimentos, cada fato marca no corpo uma impressão.
Mas alguém irá indagar: “E com as plantas também ocorre o mesmo?”. Tendo elas seiva, a energia que lhes molda o crescimento, sim, claro. Não é a locomoção que marca a dor e a alegria, é o fato apenas de está vivo sobre a terra do planeta Terra. Os seres infligem aos outros seres muitos desconfortos que sequer dão contam, pois neste espaço onde a cadeia alimentar vibra constantemente entre os seres não poderá jamais ter um equilíbrio de paz e tranqüilidade. A energia que nos move é tomada de outras fontes que também tiveram vida, é a vida fazendo a vida girar no carrossel da existência.
E assim começa a nossa narrativa. Existia em um lugar qualquer do sertão, ou poderia ser de outra parte do globo onde haja uma estrada e algumas árvores. No meu sertão empoeirado e seco, às margens de uma propriedade havia algumas poucas árvores. Três Aroeiras, um Juazeiro e um Umbuzeiro. Antes da construção da estrada e da implantação da pastagem tinham bem mais plantas, a monotonia das coisas parecia eterna e natural, até porque a realidade que só se conhecia era aquela, quebrada vez por outra pelo canto de algum pássaro ou a presença de algum animal que procurava por comida. Veio a estrada, o movimento de carros, motos e pedestres e um novo mundo se abriu aos sentidos das árvores. Sentiam-se o cheiro da fumaça dos escapamentos, a poeira áspera que voava da estrada ao passar um automóvel e ir repousar nas folhas, as conversas dos humanos que ali passavam constantemente. Também vinham os bovinos que sempre estavam fugindo do sol a descansar sob a copa delas, sem falar que em tempo de umbus pessoas iam busca-los, no único pé que estava rente a cerca, fruto doce, graúdo e saboroso.
Dado dia um barulho diferente feriu a audição das árvores, ranger forte, parecia mandíbulas prontas a devorarem tudo pela frente. Um grupo de uns cinco indivíduos entrou na propriedade e logo rodeou uma das aroeiras e em poucos segundos ligou a motosserra e foi de encontro ao caule. A coitada da árvore tremia toda, gritava, tentava correr. Que nada, árvore não tem voz, pelo menos os humanos não conseguem captar seus sons, e são presas ao chão com suas raízes, correr para onde. É assim que tem final melancólico uma planta. E os dentes ferozes da máquina dilaceraram o corpo do vegetal como se fosse uma folha de papel. A árvore gritava, gemia, pedia clemência ao Todo Poderoso. Os animais ao ouvirem tudo aquilo saíram em debandada com medo do que poderia acontecer com eles também. O tronco foi cortado e a grande estrutura veio ao chão para delírio do grupo que realizava o trabalho. Em seguida cortaram as galhas e deixaram as estacas no tamanho desejado. A pobre árvore que ainda era vivente deste mundo cruel se contorcia em dor e lamentos, suas raízes estavam vivas. Se deixasse a natureza se recompor, as cicatrizes iriam curar e novos brotos de esperança voltariam a geminar do tronco cortado. Um dos homens veio e jogou sobre o toco uma vasilha com óleo queimado. Pegou lenha seca colocou sobre e em seguida meteu fogo. As incandescentes chamas acabaram de trucidar a pobre e indefesa aroeira. Os homens foram embora, a árvore aos poucos foi perdendo o resto de seiva e morreu. O silêncio tomou conto do ambiente. Até o vento tinha parado de soprar. A tristeza e a dor consumiam os viventes.
As colegas, algumas irmãs, choravam copiosamente o fim da companheira. Pingos soltavam das folhas e rabiscavam a terra seca. O chororó tão breve se findou, no lugar dele se instalaram o medo, o pavor e o pânico. E se os demônios voltassem para terminar o serviço? Aquele horror todo aconteceria também com elas. Não sabiam o dia, mas estavam condenadas a morrer igual à irmã, pois estavam em propriedade de alguém que se achava dono do que dentro se encontrava. A paz outrora gozada morreu com a realidade obrigando a germinação do medo na consciência dos vegetais.
E a vida sempre se pautando sobre o manto da força e do poder. As maiores atrocidades são impetradas sob o julgo e arrogância de tais privilegiados.
Texto: Luiz Carlos Marques Cardoso.