
Algo curioso temos para falar sobre o primeiro bloco carnavalesco de Paramirim. Se é que podemos chamar de bloco os episódios que vamos narrar. De qualquer sorte, os fatos aconteceram e até foram comentados pelo cronista, filho da terra, Dr. Aurélio da Silva Rocha, conforme publicação nos idos de 90 no Jornal Tribuna do Sertão. Lelo sabia relatar com muita graça os acontecimentos de sua época e os frutos de sua lavra possuem a cor, o cheiro e o sabor de uma narrativa descontraída, principalmente, quando o foco era a história de Paramirim. Foi com esse tom que escreveu O Pretor – uma mistura de carnaval e costumes, narrada com muita propriedade. Protagonizada por Dr. José de Senna Moreira, um ilustre desconhecido da magistratura baiana, a serviço das pretórias do alto sertão.
Para sermos mais precisos, podemos dizer que tudo começou ao apagar das luzes da Segunda Guerra Mundial, quando aqui chegou o mencionado magistrado para dirigir o Termo de Paramirim, como pretor nomeado pelo governo da Bahia. Não o conheci, mas a foto, preto e branco, existente na galeria dos Juízes de Direito do Fórum Desembargador Dr. Arnaldo de Almeida Alcântara, associada às contundentes pinceladas do nosso cronista conterrâneo, nos dá a noção exata de como era o seu tipo físico: ” um mulato de olhos grandes, beirando a exoftalmia, vozeirão, roliço, de barriga proeminente e quadris protusos e abundantes, um verdadeiro barril de chope.”
Ainda segundo Lelo, o ilustre magistrado, que foi pretor também em Livramento e juiz em Rio de Contas, tinha muitos filhos e uma empregada passando da adolescência que ele educava à base de palmatória. Bom cozinheiro, adorava pimenta e gostava de tomar uns tragos. Fazia um peixe supimpa. Era soteropolitano e revolucionário. Se era casado, amancebado ou coisa parecida, isso não importa. O certo é que a sua popularidade mexeu com a opinião pública. Atraiu críticas, preconceitos e anedotas. Fez o que os magistrados anteriores e posteriores a ele não fizeram. Invadiu o santuário sagrado da rotina de Paramirim sem se importar com os velhos costumes mantidos pela velha guarda. Finalmente, a Guerra acabara, a ditadura caíra, o mundo já não tinha mais espaço para tantas mesmices. Assim pensando Dr. Sena convocou os principais músicos da cidade para um empreendimento inédito. Criar uma filarmônica com os artistas da terra. Um mega empreendimento musical. Por excesso de instrumentos o projeto morreu no nascedouro. Pudera, 28 trompetes, 16 pratos, clarinetes, tubas e requintes chegariam a mais de 100. A banda não passou nem tocou, mas o anedotário local que estava em decadência foi revitalizado e tudo terminou em pizza. A orquestra do pretor ficou na história…
Com esses rompantes, esquecendo a forma severa de como tratava a sua serviçal, Dr Senna, como era mais conhecido, tinha o seu lado divertido, ou melhor, quase cômico. Gostava de música e de eventos festivos, tanto é que ” organizou uma caravana levando rapazes e moças para Salvador, todos a cavalo até Brumado, para se exibirem na antiga Rádio Sociedade dos “Diários Associados” do jornalista Assis Chateaubriand. Uma oportunidade inédita para os talentos da terra ou melhor um presente de grego, sem dúvidas, uma cavalgada estafante. Por certo, cavaleiros e amazonas passaram por maus momentos ao longo do percurso. Alguns remanescentes dessa façanha estão vivos. Bem que poderiam contar melhor o acontecido.
Na década de quarenta, outros pretores estiveram à frente do termo de Paramirim, cada um a seu tempo. Na ordem cronológica, encabeçando a lista, aparece Dr. Paulo da Cunha Maia de Queiroz Tomou posse em 15 de maio de 1940. Permaneceu no termo por pouco tempo. Seu substituto Dr. Vidigal Jacinto Medeiros assumiu o exercício do cargo em 30 de agosto de 1941 na primeira administração de Dr. Aurélio Justiniano Rocha. Dr. Vidigal se indispôs com a população por ter proibido três costumes enraizados na vida dos paramirinhenses; jogo de azar nos estabelecimentos comerciais, permanência de menores nas vias públicas, depois das 20 horas e tomar banho despido nas fontes próximas à cidade. Saiu mal pra chuchu. Na sequência veio Dr. Wanderlino Vasconcelos Nogueira, empossado em 25 de junho de 1943. Foi substituído por Dr. José de Senna Moreira que permaneceu no cargo de 27 de julho de 1945 até 1949, sendo assim, o último pretor do termo de Paramirim.
Na sua crônica, Dr. Aurélio (Lelo) enfatiza que o excêntrico pretor foi de fato um revolucionário por ter introduzido no calendário festivo de Paramirim um evento cultural que implodiu velhos costumes sociais enraizados na cultura sertaneja. Irreverente ao olhar reprovador dos mais radicais, o circunspecto soteropolitano botou o seu bloco na rua carregando moças e rapazes fantasiados não sei de que a participarem de uma folia até então inédita na cidade. Acompanhado de ” corajosos ” foliões, entrando de casa em casa, Dr. Senna seguia à frente do cortejo, portando o estandarte do bloco, no qual se achava uma vistosa pomba desenhada num tecido de seda azul claro, solfejando com o seu vozeirão o refrão musical ou a trilha sonora do bloco “olha a pomba, mulher bonita de mim não zomba”. Se foi num domingo, numa segunda ou numa terça, ou durante os três dias que antecederam a quarta-feira de cinzas, pouco importa. O certo é que a ” galera ” do pretor mexeu com a rotina da pacata Paramirim. Mexeu tanto que a folia por ele introduzida virou moda e se tornou tradição.
Dessa forma, a presença de Dr. José de Senna Moreira em Paramirim (Senna com dois ns) foi muito marcante e produtiva. Sua apoteose aconteceu no Carnaval 1947, ou mais precisamente em fevereiro de 1947, quando Sua Excelência organizou o primeiro bloco carnavalesco das terras do Rio Pequeno com tudo que tinha de direito para a época. Na praça Santo Antônio, o cordão de Dr. Senna fez o que não deveria fazer, entrou onde não deveria entrar. Mas, acabou fazendo, talvez por ironia do destino. De estandarte em punho, trajando um vistoso avental de cozinheiro, sacudindo a sua adiposidade em todas as dimensões, puxou o cordão. Adentrando todas as casas sempre cantarolando o seu hino de guerra. “Olha a pomba…” Foi ai que sua Excelência a e seus adeptos se deram mal. Dona Nenem e Dona Libania, duas celebridades da igreja, sem se importarem que o dono do bloco era o ” manda chuvas ” da cidade, expulsaram os invasores, quase que na base do cabo de vassouras, antes que estes chegassem à sala de visitas, forrada de enormes fotos de seus antepassados. As celibatárias entendiam que carnaval era coisa do diabo e pecado, daqueles cabeludos… Olha que naquele tempo nem se falava de nudez e outras extravagâncias. Imaginem se fosse hoje…, a expulsão seria na base do trabuco.
Conclusão: A partir da “pomba” do pretor. Dr. Senna Moreira, estava o carnaval introduzido oficialmente no Paramirim, mesmo a contra gosto dos mais radicais.
Paramirim, 13 de junho de 2021
Prof. Domingos
Fonte: Facebook de Domingos Belarmino.